Diário de grace parte.8
Passaram-se alguns dias desde que comecei a falar com a Nina, não é bem falar, mas sim estar em silêncio enquanto lemos ou assim. Parece chato, mas é bastante agradável. O silêncio é sempre quebrado pela Melissa a querer conhecer a Nina melhor, ela não parece se importar tanto como antes e acho que a Melissa está a fazer um esforço para saber quando parar, o que é bom.

Hoje liguei à minha mãe, costumo fazer sempre isso aos fins de semana, ela contou-me do trabalho, como está o Percy, o meu cão, eu faço-lhe um resumo rápido da semana, com quem falo ,como andam as aulas etc... Não sou muito boa em dar resumos.
-"É bom ouvir-te assim" -ela disse
-Assim como? -perguntei confusa
-"Feliz" -ela responde, como se conseguisse ouvir o seu sorriso doce entre os pequenos soluços -"Não sabes o quão contente isso me deixa ,querida"
-Desculpa, mãe.
-"Desculpa? Não há motivos para pedires desculpas ,eu agradeço tanto por a minha menina estar feliz"
"A minha menina". "Querida". Aquelas palavras ecoaram na minha cabeça. Sabia tão bem. A minha mãe foi a primeira a dizê-las e será sempre a que mais me emociona mais quando as diz. Apetece-me chorar todas as vezes que ela o faz, não de uma maneira triste, mas de alegria.
E falando nisso, nunca contei sobre as aulas de educação física, que para mim, é o inferno na terra. Primeiro o equipamento: uma T-shirt branca com o logótipo da escola em vermelho e umas calças, ou calções, dependendo do que o aluno escolhe ,vermelhos com riscas brancas. Segundo, o suor. Odeio suar. Terceiro, termos de fazer exercícios estúpidos para no final termos uma nota de, não satisfaz, só por não aguentarmos fazer 20 vai e vens, 30 abdominais e 20 flexões. Quanto às equipas... Nesta escola nem é assim tão mau, pelo menos colocam-me com o resto das raparigas ,mas continua a ser horrível olhar para os corpos femeninos delas. Sinto-me deslocada. Eu quero estar ali, eu mereço estar ali, mas fico sempre com medo. Imagino as raparigas a rirem-se de mim e a julgarem-me. As piadas, os risos, os olhares de lado são como uma prisão e quando dou por mim, estou a tremer e os olhos embaçados. Mas ninguém nesta escola fez isso. Ninguém fez piadas, ninguém se riu de mim, ninguém me olhou de lado, mas a sensação de pavor não desaparece. É como se fosse uma ovelha rodeada de lobos. Mas aqui... Não têm lobos, mas mantenho-me sempre alerta como se eles pudessem aparecer e atacar-me.
Odeio isto. Odeio ter de ficar ali e vê-las trocar de roupa, odeio, mesmo que sejam apenas uns segundos antes de correr para uma casa de banho vazia, odeio ter de ter medo de me trocar e a Melissa entrar de repente e rir-se do meu corpo, odeio ter de me olhar ao espelho e as memórias das piadas, dos olhares tortos, dos empurrões, dos puxões de cabelo, do silêncio que ficava sempre que eu aparecia na sala.
Detesto tanto isto, detesto tanto o meu corpo, detesto-me tanto que parece piroso quando o penso.
A Nina partilha a mesma opinião, exceto em algumas coisas, claro. A Melissa é difícil de compreender, tanto parece que odeia as aulas como adora. Acho que ela adora o facto de poder descarregar toda a energia que acumula, mas por algum motivo, está sempre chateada. Fui até ela e perguntei-lhe o porquê disso.
-David Smith. -murmurou com puro ódio
-O quê?
-Ele simplesmente acha que me pode vencer em tudo! -acrescentou
-Não estou a perceber nada do que estás a dizer. -o que não é uma novidade
-O David Smith é um tipo do meu ano que pensa que é melhor que eu em tudo. O que é completamente mentira!
-Ok. E o que é que isso tem haver com a educação física?
-Eu sou a top 1 no desporto feminino da escola desde o sétimo ano e, desde o sétimo ano, ele tenta bater os meus recordes. Obviamente que não consegue. -afirmou com confiança -Mas ele está sempre a provocar-me nas aulas e a desafiar-me. Ele odeia-me e eu não entendo o porquê! É tão idiota! Não concordas?!
Encolhi os ombros e ela alongou-se quando foi chamada para se juntar a uma das equipas de futebol.
-Bem, tenho de ir. Até já, Gracy.
Ela afastou-se numa corrida enquanto o rabo de cavalo balançava no topo da cabeça.
Disse ao professor que estava com dores no joelho e ele deixou-me ficar sentada no banco o resto da aula.
Fiquei em silêncio a ver os outros a fazer a aula, parecia as almas no purgatório. O que sinceramente, não é muito diferente.
De repente um rapaz com o cabelo castanho claro senta-se a uns dois metros de mim.
-Isto é ridículo.
Fiquei calada. Pensei que ele estava a falar sozinho então só continuei a ver a Melissa jogar.
-Não fazes aula? -perguntou-me
-Dói-me o joelho. -respondi sem desviar o olhar dos outros alunos
-É. Eu estou em pausa.
Para ser sincera, não me apetece falar. É de manhã cedo, numa aula de educação física e está um frio de congelar os ossos, mesmo vestindo o equipamento de inverno e um casaco por cima.
-Não falas muito, pois não?
Mais uma vez, não respondo. O que é foi a melhor resposta de todas. Ao fundo do campo, a Melissa celebrava um golo que acabara de marcar. Ela correu de um lado para o outro com os braços estendidos enquanto as outras raparigas da equipa celebravam com ela. Soltei uma gargalhada silenciosa e o rapaz ao meu lado bufou numa risada falsa.
-Ridícula. Ela acha-se a maior apenas porque sabe fazer uma coisa ou duas ,pensa que toda a gente tem de gostar dela só porque é riquinha. Que estúpida.
Olho-o de canto. Este deve ser o David Smith. Aquilo irritou-me. Não vou dizer que quando conheci a Melissa não pensei a mesma coisa, mas eu sei que ela não é assim, pelo menos, pelo que eu vi e conheci até agora, ela não me parece ser esse tipo de pessoa. Ao contrário deste tipo.
-Não achas?
Porque é que as pessoas estão sempre a perguntar-me o que eu acho? Eu sei lá. Eu não sei. Eu não quero saber. Apenas acho que a Melissa até agora se mostrou uma boa pessoa e que ouvir alguém a falar assim dela deixa-me irritada. Raramente as coisas deixam-me irritada, apenas quando é algo que passa mesmo dos limites.
Virei-me para ele e respondi em um tom grave, muito mais do que eu pensei que a minha voz alguma vez pudesse soar.
-Cala-te. Apenas. Cala-te.
As sobrancelhas dele ergueram-se. E os lábios curvaram-se num sorriso.
-Interessante. -ele esticou-me a mão para um cumprimento -David Smith.Prazer em conhecer-te.
Levantei-me e afastei-me mais dele. Sento-me a vários metros dele, distância de pessoas assim. Estou cansada, só quero voltar para o quarto e trocar o meu equipamento para uma roupa confortável e quente, enfiar-me na cama com um livro e um chá, abraçar-me ao peluche gigante de pinguim que tenho em casa e dormir.
No final da aula a Melissa veio a correr até mim e abraçou-me com um sorriso. Suor ,abraço... Porquê Melissa?
-Marquei três golos, Gracy! Viste?
-Vi. -respondi
-Meu Deus! Foi incrível!
Dirigimo-nos para os balneários. Ela pegou nas suas coisas e voltámos para o dormitório.
Não sabia se devia contar-lhe sobre o David. Não queria que ela se chateasse mais com aquele idiota, mas também não queria guardar isto.
A Melissa foi para a casa de banho tomar um banho. Enquanto isso, fiquei a refletir sobre se devia dizer-lhe ou não o que se passou.
Depois de um tempo a água do chuveiro parou de correr e comecei a falar do quarto.
-Conheci o David Smith.
-O quê?!
Ela saiu da casa de banho com o uniforme já vestido e todo amassado, cabelo molhado que claramente se iria arrepender depois de ter de trocar a camisa branca.
-Conta-me tudo?! Ele disse-te alguma coisa? Chateou-te? Vou esmurrar-lhe a cara! -respondeu com um estalar de dedos
-Não me chateou. Talvez um pouco.
-O que é um pouco? O que é que ele disse?
Não queria criar mais uma discussão entre eles, estava demasiado cansada sobre isso, mas era melhor do que ficar calada. Então contei-lhe.
A Melissa recuou, a sua cara escureceu em sombras e dirigiu-se de volta à casa de banho. Ligou o secador e não voltou a falar disso até ao final do dia.
Estávamos as duas deitadas nas nossas respetivas camas quando ela disse:
-Achas que sou uma riquinha egoísta e egocêntrica?
Virei o rosto para ela
Estava deitada de barriga para cima e a olhar para o teto.
-Não. -balancei a cabeça
Ela desatou a chorar. Escondeu o rosto na almofada e conseguia ouvir perfeitamente os soluços abafados.
Aproximei-me dela e hesitei antes de lhe colocar a mão nas costas e fazer círculos suaves.
Posso não conhecer bem a Melissa. Ela deve ter os seus podres, de certeza, mas o que vejo agora não é uma qualidade ,nem um defeito, muito menos uma riquinha egoísta e egocêntrica. É um momento de fragilidade e vulnerabilidade.
Foram tantas as vezes em que estive assim. Encolhida na minha cama a chorar agarrada à almofada, ao meu peluche de pinguim, ou apenas a mim mesma enquanto arranhava os meus braços, enquanto a minha mãe tentava parar que eu me arranhasse. Ela a abraçar-me, a dar-me festas no cabelo, a fazer-me círculos nas costas. A acordar horas ou minutos depois abraçada à minha mãe com os olhos cansados e a pele a arder.
A Melissa virou-se e abraçou-me com força. Ouvi os soluços e senti as lágrimas no meu pijama de lã. Coloquei os braços em volta da cintura dela e abracei-a. Não a soltei enquanto ela não o fizesse, nem a soltaria, mesmo que ficasse ali o resto da noite. Ficaria ali até que ela quisesse ,até que os olhos lhe doessem de chorar ,até que as minhas costas doessem de ser agarrada com tanta força, até que a fragilidade daquele momento desaparecesse. Eu ficaria ali.
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